A vida com menos de 1 salário mínimo
Cesar ganha no máximo R$ 600 por mês limpando cascos de embarcações. Cleide tirou menos de R$ 400 com "bicos" de cabeleireira nos últimos meses. Já Hélio, dependendo do dia, mal consegue juntar R$ 20 com os trocados que recebe fazendo malabares com fogo em semáforos da capital paulista.
A renda média do brasileiro atingiu uma mínima histórica e, para uma grande parcela de trabalhadores, sobretudo os informais e subocupados, a remuneração mensal não chega sequer ao valor do salário mínimo, que até o final de 2021 estava em R$ 1.100 e subiu em 2022 para R$ 1.212.
Os brasileiros com uma renda mensal de no máximo 1 salário mínimo passaram a representar desde o ano passado a maior fatia da população ocupada na divisão por faixas de renda. Os mais atingidos pela baixa remuneração costumam ser os trabalhadores com baixa escolaridade e que trabalham na informalidade, fazendo os chamados "bicos" ou "corres".
Cleide, Hélio e Cesar: ganhos de menos de um salário mínimo são desafio para se manter ao longo do mês — Foto: Fábio Tito/g1; Arquivo pessoal
Segundo levantamento da LCA Consultores, com base nos indicadores da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) trimestral do IBGE, o país encerrou 2021 com um total de 33,8 milhões de trabalhadores (36% do total de ocupados) com renda mensal de até 1 salário mínimo, o maior contingente já registrado na série histórica iniciada em 2012. Em 1 ano, o salto foi de 12,2%, ou 4,4 milhões de pessoas a mais.
Os números da PNAD não permitem identificar quantos trabalhadores recebem menos que o piso mínimo nacional, mas revelam que 21,9 milhões tiveram renda entre 1/2 e 1 salário mínimo no trimestre encerrado em dezembro. Outros 9,6 milhões receberam até 1/2 salário mínimo e 2,2 milhões (grupo formado basicamente pela categoria trabalhador familiar auxiliar) não receberam nada. Veja quadro abaixo:
Quase 34 milhões de brasileiros recebem até 1 salário mínimo — Foto: Economia g1
"É a necessidade de composição de renda. Como o mercado de trabalho formal não conseguia absorver todas as pessoas, muitas delas acabaram ingressando em ocupações informais, recebendo menos do que recebiam antes da pandemia", afirma Bruno Imaizumi, da LCA Consultores, autor do levantamento.
'Tem que ficar correndo atrás de dinheiro'
César Augusto Pires Xavier tem 48 anos e um sonho: conseguir novamente um emprego com carteira assinada. Desde que foi dispensado da loja em que trabalhava quando ela faliu, há 3 anos, ele vive de bicos esporádicos que lhe garantem, no máximo, R$ 600 no mês.
Isso não quer dizer que ele trabalhe pouco. César rala de domingo a domingo fazendo serviços pesados para empresas náuticas de São Sebastião, no litoral de São Paulo. Ele raspa sujeira incrustada nos cascos, carrega embarcações pesadas e faz trabalhos com fibra.
Cesar Pires Xavier faz bicos de conserto e manutenção de barcos, mas ganhos mensais não chegam a R$ 600 — Foto: Arquivo pessoal
Para garantir alguma renda, ele percorre de bicicleta, sob sol e chuva, o caminho entre sua casa alugada e os galpões de barcos ao longo da cidade. Ele mora com a mãe pensionista e a irmã desempregada.
“Minha mãe tem 86 anos e minha irmã está desempregada. Tudo que eu faço é por elas. Eu me desloco muitos quilômetros de bicicleta para trabalhar sábados e domingos e poder ter um dinheiro pra tentar manter a casa, mas é difícil”, desabafa.
“A gente tenta trabalhar e receber, mas às vezes termina o serviço e vai receber só depois de 4 semanas. É difícil porque quem paga não passa dificuldade, a gente é que passa sem ter até dinheiro pra comprar gás, tem que ficar correndo atrás de dinheiro. Minha mãe é pensionista, recebe um salário e o que ela tem é pra comprar mantimentos pra casa, mas temos as contas.”
César conta que não conseguiu bancar uma faculdade. Começou a trabalhar cedo e sempre ajudou os pais em casa. Ele concluiu um curso técnico em contabilidade e sua trajetória profissional foi toda focada em vendas.
Mesmo com anos de experiência, já viu várias vagas abrirem e fecharem, e seu currículo nunca ser levado em consideração. “Tem pessoas que já entregaram currículo, eu entreguei na frente delas, elas estão empregadas e eu não. Tenho currículo no PAT, já fui lá várias vezes, mas não sou chamado. Acho que é pela idade”, lamenta.
Malabarismo para sustentar filha de 8 meses
Hélio Soares Maciel, 21 anos, faz malabares com fogo nas ruas da capital paulista. A renda varia muito, e ele vive de doações, principalmente da sogra, que o ajuda a sustentar a mulher e a filha de 8 meses.
Pintado de prata, Hélio Soares, de 21 anos, se apresenta com malabares em chamas em um cruzamento do Jardim América, bairro nobre na Zona Oeste de São Paulo. Há cerca de 9 anos ele abandonou os estudos e começou a trabalhar como artista de rua depois que a mãe morreu — Foto: Fábio Tito/g1
“Eu só trabalho para sobreviver mesmo, pegar um dinheiro para comprar uma misturinha, para não faltar nada em casa, compro o leite da minha filha”, diz o artista de rua.
Hélio mora no Jaçanã, bairro paulistano que fica na divisa com Guarulhos, e demora entre 1h30min e 2h para chegar os bairros da área nobre de São Paulo onde costuma se apresentar em troca de contribuições.
Quando o dia de trabalho é "bom", ele consegue juntar entre R$ 60 e R$ 70. No dia da entrevista ao g1, ele disse ter recebido apenas R$ 22, valor que mal cobre os gastos com o transporte e a gasolina usada para acender os malabares.
Em casa, Hélio beija sua filha, Victória, de 8 meses — Foto: Fábio Tito/g1
“Gasto de aluguel R$ 350, mas minha sogra me ajuda. Gasto com comida, compro fralda pra neném, as coisas que [a gente] precisa dentro de casa. Cesta básica minha sogra ganha e dá pra nós", conta.
Helio não está inscrito em nenhum programa social e não conseguiu o Auxílio Emergencial durante a pandemia. “Ah, se aparecesse um emprego para mim, uma oportunidade, eu ia em frente”, admite.
Hélio recebe doação entre um farol e outro na Avenida Brasil. À direita, a tatuagem que tem no braço — Foto: Fábio Tito/g1
Com pós-graduação e fazendo bicos de cabeleireira
Para obter alguma renda, Cleide Aparecida de Souza, de 40 anos, com curso superior e pós-graduação em Serviço Social, passou a fazer pequenos "bicos" como cabeleireira no bairro onde mora na Zona Leste de São Paulo.
"Quando tá dá hora, tá tudo bom mesmo, eu chego a tirar R$ 400. Mas na maioria das vezes não chega nem a R$ 200", afirma a assistente social, que após ter ficado desempregada entrou nas estatísticas dos trabalhadores subocupados.
Cleide de Souza, de 40 anos, é assistente social mas passou a fazer 'bicos' como cabeleireira após ficar desempregada — Foto: Fábio Tito/g1
"Eu falo que é um 'tampa buraco'. Não é renda. Não posso chegar na minha mãe e falar: 'Deixa que a conta de luz eu vou segurar'. Eu não tenho essa certeza de que todo mês eu vou ter esse dinheiro", diz.
Fora do mercado de trabalho formal desde 2019, ela passou a ser sustentada pela mãe pensionista do INSS após gastar todas as suas reservas e depois do fim do auxílio emergencial. É dos parentes que veio emprestado o laptop para procurar vagas de emprego e fazer cursos online de especialização.
Cleide passou a contar com a ajuda da mãe para fechar as contas após ficar desempregada — Foto: Fábio Tito/g1
"Sempre fui uma pessoa independente. Viajava, tinha minhas coisas, comia em restaurante, ia na lanchonete beber umas cervejas com os amigos", afirma. "Hoje eu não consigo comprar um sapato. O último sapato quem me deu foi minha irmã", completa.
Perfil dos trabalhadores com renda muito baixa
De acordo com o levantamento da LCA, dos quase 34 milhões de brasileiros com renda de até 1 salário mínimo, 49% possuem até o fundamental completo, 40,4% têm o ensino completo ou incompleto e 10,2% chegaram a ensino superior. Na distribuição por cor, 57,2% se autodeclararam pardos, 30,2% brancos e 12,5% pretos.
Além de serem trabalhos sem vínculo formal e de baixa remuneração, são ocupações em que quase nunca se sabe qual será a renda no mês.
"A condição de trabalho é precária e muitas vezes as pessoas buscam fazer aquilo que é chamado de bico, trabalhar por conta própria na busca de conseguir algum tipo de remuneração. E isso tem a ver tanto com atividades de comércio de rua, como atividades de prestação de serviços, de manutenção", explica Marcelo Ribeiro, pesquisador do Observatório das Metrópoles e professor do IPPUR/UFRJ.
Estudo divulgado neste mês pelo Observatório das Metrópoles, em parceria com a PUC-RS e a Rede de Observatórios da Dívida Social na América Latina, apontou que 23,6% da população das regiões metropolitanas vivem em domicílios com renda per capita de no máximo 1/4 do salário mínimo. No auge da pandemia, esse percentual chegou a quase 30%.
"Grande parte dessa população que tem baixos rendimentos são pessoas que trabalham principalmente naquele tipo de trabalho que é considerado informal. Trabalhos sem nenhum tipo de proteção social, com relações precárias, mas são trabalhos que elas conseguem se arriscar para poder garantir algum tipo de remuneração", destaca o pesquisador.
Salário mínimo ideal deveria ser 5 vezes maior, diz Dieese
Mesmo para aqueles que conseguem receber ao menos o piso mínimo nacional, o poder de compra tem sido reduzido pela inflação. O salário mínimo de R$ 1.212 não chega a ser suficiente para comprar duas cestas básicas por mês. Em São Paulo, o custo da cesta básica foi de R$ 761,19 em março.
Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o salário mínimo ideal deveria ser de R$ 6.394,76, ou 5,28 vezes o o piso nacional. O cálculo considera o preço da cesta básica e o mínimo necessário para suprir as despesas de um trabalhador com uma família de quatro pessoas com alimentação, moradia, saúde, educação, vestuário, higiene, transporte, lazer e previdência.
Nos últimos meses, o mercado de trabalho tem dado sinais de recuperação, com queda do desemprego e interrupção da queda da renda média. Os números do IBGE evidenciam, no entanto, que os brasileiros até estão conseguindo algum trabalho, seja na informalidade ou como conta própria, mas seguem sendo mal remunerados, situação que se torna ainda mais preocupante em razão da disparada dos preços de itens como combustíveis e alimentos.
A inflação persistente associada à perspectiva de baixo crescimento da economia no ano limita o ritmo de recuperação do mercado de trabalho e de recuperação das perdas da renda média dos brasileiros. A massa de todos os rendimentos do trabalho foi estimada em R$ 234,1 bilhões pelo IBGE no trimestre encerrado em fevereiro – ainda R$ 20 bilhões abaixo do que o que se registrava no pré-pandemia.
"Quando se olha para os primeiros resultados, de janeiro e fevereiro, até vemos uma reversão da tendência da renda real média do brasileiro, mas ainda assim num patamar muito baixo", destaca Imaizumi, destacando que a inflação corrói a renda e empobrece toda a população, sobretudo a da mais pobre.
"Como a economia está estacionada, não estamos observando um processo de recuperação econômica, e isso tem rebatimento na renda", completa Ribeiro.
Para Cleide, pelo menos, os dias de bicos finalmente chegaram ao fim. No final de março, ela começou a trabalhar numa ONG do bairro onde mora. A remuneração é a do piso da categoria de assistente social, mas será o primeiro emprego com carteira assinada depois de mais de 3 anos de procura.
Renda em queda e vida no aperto: os 'corres' dos brasileiros que não ganham nem 1 salário mínimo - Globo.com
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